domingo, 21 de novembro de 2010

Entrei naquele bar sozinha. Era um lugar bonito, com mesas e cadeiras feitas de madeira nobre e escura. A meia luz me deixava confortável, apesar daquela sensação de que algo aconteceria naquela noite.
Sentei na mesa e pedi um dry martini, porque estava uns graus a menos do que habitual para aquela cidade tropical e eu preferia um drinque do que a cerveja de costume. Passou por mim um homem bonito, como aqueles homens dos filmes antigos que tem rostos de porcelana e traços bem traçados e masculinos, uma típica estátua de deus grego. Ele me olhou e sorriu, parou e sentou sem pedir licença na cadeira ao lado. Ele era inteligente, interessante, bonito e tinha a etiqueta de um cavalheiro inglês. Bom demais para ser verdade.
Pediu uma garrafa do melhor vinho ao garçom, e antes mesmo que eu pudesse terminar o meu martíni, ele pediu outro para mim. Perguntou meu nome e o que eu fazia ali sozinha numa noite de sábado, e com cuidado e cordialidade, me disse que moças não devem sentar sozinhas, por isso ele gostaria de sentar e conversar, se assim eu quisesse. Não respondi de imediato, olhei incrédula para aquele ser tão nórdico e educado, e sabendo que nada de tão interessante poderia acontecer, respondi em afirmativa.
Perguntei seu nome com curiosidade extrema, de alguma forma ele me instigava com seu jeito misterioso. Com a sua elegância peculiar, ele sorveu um gole de seu vinho tinto e mudou de assunto, descobrindo com perguntas os segredos de meu complexo âmago.
Tivemos uma longa conversa agradável. Conversamos muito sobre a cidade, sobre filosofias, sobre o futuro, sobre redenção.
Estranhamente ele sabia mais de mim do que podia, sabia coisas obscuras que minha boca não proferia nem a um padre na hora da morte. Sabia se o que diria me afetaria, sabia que se o dissesse de outra forma não, como um psicólogo que examina seu paciente a cada movimento de mãos, braços e pernas, a cada nova expressão facial. Estranho, mas surpreendente.
Meus olhos se perdiam entre as pessoas na meia luz, e por minutos fiquei vidrada naquela vitrola antiga que servia de enfeite e tornava o ambiente aconchegante, vidrada nela, mas com pensamentos longíquos e quinze imagens diferentes passando na minha mente como fotografias.
Mesmo com o meu silêncio, as horas de conversa iam se estendendo com o único objetivo de descobrir o que havia debaixo da máscara silenciosa que encobria meu rosto. Havia em mim um lago cristalino, e a cada gole sorvido de seu vinho tinto ele nadava mais fundo, se aproximando da área remota e muito escura de sua imensidão.
Pediu ao graçom mais um drinque para mim e colocou na junkie box uma das mais tristes bossas para que meus pensamentos se perdessem no vento e meus olhos ficassem distantes mais uma vez.
Como alguém tão estranho poderia saber tanto sobre mim?
Ele discutia sobre assuntos diversos, mas quando falava de mim, sempre tinha uma teoria, então às vezes eu o achava chato, certas vezes irritante, às vezes eu concordava com ele. Mas de certa forma, ele sempre estava certo.
O ponteiro passava rápido, mas o tempo parecia estagnado. Eu não conseguia mais parar de prestar atenção em seus olhos, sua psiqué, sua dialética. E seus argumentos estavam sendo imprescindíveis para a decisão de tantos dos meus planos!
Ele sabia tudo sobre mim, e eu sequer sabia seu nome, mas isso não importava mais. Eu só queria que ele estivesse perto de mim para sempre como naquele dia ele estava. Eu queria suas idéias.
Na verdade, comecei a perceber que eu necessitava delas para a minha sobrevivência.
Onde ele esteve esse tempo todo? Em que lugar escondido do mundo ele estava para que esse encontro acontecesse somente nesta noite solitária?
- Eu sempre estive mais perto do que você pensa. - Ele disse com seu charme antológico e seu sorriso torto.
Apaixonante.
Quando enfim o garçom recolheu o último copo vazio e a música parou de tocar, eu perguntei o seu nome nervosa e titubeando:
- Quem é você, afinal? -
- Eu sou parte de você, sou um pedaço de sua alma, sou a qualidade da sua mente, eu sou suas três dimensões...
Eu sou a sua consciência.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Prata.

Um par de dedos enfeitados. 

A chuva, a melancolia, o concreto, o azul discreto, a salina na boca, o tempo correndo com o vento.

Tudo fica tão mais bonito com meu coração batendo no ritmo do teu peito. 

Com tua mão direita pesando na minha mão direita, guiando os passos também direitos que damos em direção à nós mesmos. 

Nossa juventude contra a direção, nosso riso deitado no colchão, nosso amor em teu lençol azul cor-de-giz. 

Nossa matéria se desfaçelando em mil grãos desabotoando o terno italiano, despindo a saudade.

Nossa maestria nos dedos carinhosos, majestosos de quem sabe ser em dupla aprendiz.

A ti, minha lealdade. 

 

 

 

 

domingo, 14 de novembro de 2010

Subliminar.

Eu parto do pressuposto espiritual de que se estamos neste planeta é porque somos seres involuídos.
Morar aqui é queimar karma, só pode.
Por sermos seres involuídos e infinitamente inferiores, sentimos raiva, paixão, ciúme e (por que não?) inveja. Sim, todos sentimos inveja, uns mais, outros menos.
Tem gente que libera isso em forma de olho gordo, tem gente que aceita a inveja e guarda. Eu não tenho muitas invejas negras, a maioria delas são brancas e brandas, como dos moradores de jericoacoara ou de Paris, ou de quem tem tatuagens lindas, ou de quem sabe se vestir bem.
Mas ele me causa uma inveja negra fudida, não sei nem medir esse tamanho de inveja profunda e raivosa que se alimenta dos meus mais genuínos e puros desejos.
Me peguei o xingando outro dia, só porque tenho inveja.
Tenho inveja que ele fica o dia inteiro escrevendo, tenho inveja que os pais dele têm dinheiro para mantê-lo em casa com a mais bela biblioteca do mundo, com os mais nobres autores lhe fazendo companhia em sua cadeira confortável de 2678 dólares e com os mais sofisticados utensílios de escrita.
Morro de inveja quando pego meu laptopzinho que me irrita com suas teclas falhas ou quando eu não tenho internet para fazedr pesquisa, morro de inveja quando quero ler aquele livro raro que só se encontraria em algum lugar nórdico inacessível e ele tem em casa e nunca leu, tenho inveja que ele não precisa trabalhar pra pagar as contas e, por isso, tem tempo de fazer leituras, releituras e poesias lindas e saborosas que enchem os olhos e o coração com tanta beleza 'degustável'.
Só pra constar, a gente não se conhece.
Se eu o conhecesse, a inveja se transformaria em orgulho, porque é isso que eu sinto pelos amigos que fazem coisas legais.
Mas eu sei umas coisas da vida dele, eu sei que ele é sociofóbico e tem poucos amigos, eu sei que ele tem depressões e angústias gigantescas, eu sei que a felicidade dele é abstrata e distante. agora me pergunta se eu troco a minha vida de pobre que pega o ônibus todo dia e atrasa faturas e contas, mas que tem amigos tão amigos que lêem qualquer porcaria que eu faço – e ainda elogiam – pela vida dele?
Não troco, não troco, não troco.
Não troco minha vida suada pela vida “fácil” dele por nada neste mundo. não troco as festas frenesi na casa da Kaká ou do Diego, não troco as jantas com 30 pessoas que dividem pratos e talheres sem nojinho, não troco as baladas de 20 reais (e ainda assim bem bêbadas), não troco esse riso frouxo que ganha o coração de sogras e crianças, não troco as noites frescas na varanda movidas a piadas e bobagens por uma vida glamurosa e solitária na super biblioteca nem a pau.

Eu não sei quem me falou um dia que nosso espírito vem ao mundo sabendo do nosso destino. Eu acredito tanto nisso, principalmente quando acontecem dejà vús intensos.
Pelo jeito eu escolhi ter amigos de verdade. E isso não tem conta bancária no mundo que compre.
Aliás, do que eu tava sentindo inveja mesmo?

Nada, absolutamente nada mesmo, paga uma discussão entre eu, Matheus e Zanow sobre as teorias e os teóricos e os paralelos dos escritores da antiguidade para os modernos. Com gente assim na vida, quem precisa de uma Saraiva em casa?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Desate os nós.

Eu tinha quase trinta anos quando cometi um dos maiores erros da minha vida.
Eu era um rapaz bonito, bem-sucedido e que tinha muitos amigos, eu era conhecido e reconhecido.
Porém, minha mãe e eu não nos falávamos mais. Por motivos que até hoje não entendo quais são, ela deixou de me amar. Não me olhava mais nos olhos e queria muito que eu saísse de casa para não ter mais que me aguentar. Eu estava triste, cabisbaixo, e chorava muito por aqueles dias.
Eu tinha uma linda namorada com quem eu compartilhava a minha tristeza. Mas a minha mãe proíbia a entrada dela na minha casa.
Haviam dias em que eu chegava em casa cansado do trabalho, e a única coisa que eu queria era um pouco de atenção e carinho, carinho esse que eu sempre recebi dela, antes da ojeriza. Eu nem exigia tanto, apenas atenção, conversação me bastariam.
Mas tudo o que eu via era o seu olhar de desprezo para mim.
Pouco tempo se passou assim até que a raiva que ela sentia de mim se propagou, e eu além de tristeza, passei a odiar a mulher que eu mais amei na minha vida.
Foi com ela que dei meu primeiro passo.
Foi ela que cortou a minha primeira mecha de cabelo loiro.
Foi ela que fez da colher um avião para que eu sentisse prazer em comer gororobas de beterraba.
E hoje, ela não significa mais nada pra mim.
Como é triste lembrar do bonito que algo ou alguém foram quando esse bonito começa a se deteriorar irremediavelmente.
Um dia, cheguei em casa perdido. Eu tinha discutido com meu chefe, estava triste, minha namorada não atendia o telefone e pra piorar eu havia comido e deixado o meu prato na pia.
Pronto. O prato na pia virou escândalo. Minha mãe me atirou ofensas como quem acerta um punhal no peito alheio, e meu corpo começou a chorar por inteiro de suor e lágrimas.
Já não suportava mais aquela situação.
Corri para o meu quarto e chorei copiosamente. Não conseguia entender porque aquilo estava acontecendo comigo. Liguei o som no mais alto que minhas caixas aguentavam e coloquei a música mais pesada que eu conhecia. Nuvens negras entravam em meu quarto e tomavam conta de meu cérebro, me deixando cego.
Fui até a gaveta onde meu pai guardava seus objetos mais pessoais, peguei seu antigo 38 e com elegância e graça dei um tiro na cabeça, deixando apenas um bilhetinho:


Grande parte da vida que eu possuía foi roubada, vendida ou doada. 
Quanto aos meus restos mortais, suplico encarecidamente; não o torturem com choros, rezas ou velas. É apenas a minha matéria e imploro que a deixem degradando-se em paz. A putrefação não é degradante. Se a humanidade permitisse que a natureza tomasse o seu curso, seria o renascimento da matéria.
Eu renasceria no vento que passa a murmurar, nas folhas que farfalham, no solo que abriga e alimenta milhares de seres vivos, na água que corre para o mar nas chuvas que regam os campos, no orvalho que cintila ao luar, nas grandes árvores que abrigam ninhos de passarinhos e que vergam a passagem dos ventos fortes, nos pequenos arbustos que escondem a caça do caçador...
Céus! Eu me vingaria se apenas uma de minhas partículas participasse do desabrochar de uma flor ou do canto de um pássaro. 

Romântico? Não! 
Foi o mundo, a política, meu educador, mas principalmente... foi o seio que aconchegou a criança que vinha lhe contar as suas tristezas, mágoas, alegrias, pensamentos, e seus desejos íntimos... suas esperanças. 
A criança crescida quer voltar para lhe contar seus sofrimentos, desilusões, a morte de suas esperanças... para encontrar novamente o aconchego onde poderá descansar sua cabeça cansada e abatida e onde poderá, enfim, chorar as suas lágrimas que não encontram mais onde chorar.
Volto derrotado porque não fui capaz de viver. Trabalhar e estudar não foram suficientes para mim. E foi tudo o que me restou. Prefiro morrer do que viver com a morte dentro de mim. 

É melhor queimar do que se apagar aos poucos.
Perdoem-me.


Minha mãe nunca se perdôou e viveu em depressão em cima de uma cama de hospital durante 9 anos, até falecer de desgosto.
Mas ela teve milhões de chances de se redimir, e eu também.
Com apenas duas palavras: Me perdoa?
E nós dois não o fizemos. Me arrependo amargamente de ter interrompido uma vida frutífera por mágoas. Me arrependo de não tentar conversar com ela mais vezes sobre essa morte do amor dela por mim.
É triste morrer sem entender. É triste perder alguém sem entender.

Não deixe que as mágoas, o rancor e a raiva tomem conta da sua vida.
Não construa paredes, muros e edifícios em volta de você, abra-se. Deixe-se ser descoberto.
Perdoe-se, perdoe aos outros. Desate os nós. E seja feliz.




É tão bom ser oco.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

La foul.

Ouvindo Piaf senti isso, essa coisa fria que me arrepiou, la foul.
Deprimente, porém bonito. São as marcas dos nossos tropeços doendo que nem cicatriz em dia de chuva.  
E assim, ouvindo o som que entrava suave aos meus ouvidos, e aquele sotaque que parecia ter sido meu em alguma outra vida, chorei. Chorei durante 23 minutos. Engoli a cerveja, desliguei a vitrola e saí para me divertir.
Com o pensamento distante, quase perdido, eu parecia uma autista passeando pelas ruas do Leblon. 
Em um vazio me faço gente, mas dois passos depois e me perco de novo na imensidão caótica da minha mente. Minha dura carne que me trai.
Mas como a tudo se supera, um pouco antes de o sol nascer, a dor já havia sido retirada como se a cerveja fosse morfina, e a ferida devidamente estancada.
Difícil é quando a gente bate no machucado vez que outra e ele volta a sangrar, nos lembrando de como somos frágeis quando sentimos dor.
Até lá, eu vou fingindo que ele não existe, coloco umas ataduras por cima pra disfarçar, viro o rosto, ponho meu salto alto e vou beber, rir e dançar.

Alors, sans avoir rien
Que la force d'aimer,
Nous aurons dans nos mains,
Amis, le monde entie!